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Molière: a relação médico-paciente nos palcos de teatro

  • Foto do escritor: Geicimara Kelen
    Geicimara Kelen
  • 17 de mai. de 2021
  • 4 min de leitura

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A arte sempre teve uma função social, para além de mero entretenimento. Dentre muito que se pode dizer, ela tem o papel de refletir o mundo e a sociedade, seus valores, princípios, angústias e mazelas. Ela coloca uma lupa no cotidiano e sensibiliza toda uma comunidade, por meio de linguagens, muitas vezes, mais acessíveis que a formalidade acadêmica. Mas, além disso, a manifestação artística adquire uma função muito maior: ela pode criticar problemas sociais, governos, valores ultrapassados, costumes e práticas. Nesse sentido, o palco do teatro é espaço de grande relevância para o cumprimento desta função.


Esse criticismo – especialmente quando se fala da comédia -, foi indispensável para a construção de uma sociedade tal qual conhecemos hoje. O discurso humorístico carrega, em si, o poder de fazer apontamentos e sátiras de maneira leve e lúdica, sendo, muitas vezes, mais eficaz que outros veículos de comunicação[1].


Dessa forma, a sátira teve como alvo diversas estruturas sociais. Um exemplo disso é a Commedia Dell’Arte, que ridicularizava a nobreza por meio de personagens caricatos. E nesse cenário, a relação médico-paciente não ficou de fora dessas críticas.


Isso porque, até meados do século XX, era muito forte a ideia de um cuidado paternalista, de modo que o médico detinha todo o conhecimento, e o paciente estava sujeito a qualquer decisão que aquele viesse a tomar. Foi só após o terror do Holocausto que se materializou, pela primeira vez, a doutrina do consentimento informado, no Código de Nuremberg em 1948. Resumidamente, essa doutrina busca garantir que a autonomia do paciente seja respeitada nos processos de saúde, devendo este ser informado e concordar com os termos de uma intervenção em seu estado clínico antes que esta venha a acontecer. Trata-se de um mecanismo que torna as relações entre médicos e pacientes mais equilibradas.


Entretanto, o pensamento sobre liberdade e autonomia não nasceu apenas após a Segunda Guerra Mundial, tendo visto sua origem a partir do século XV. Foi nesse período de rejeição à teocracia, e foco no ser humano que o renascentismo ganhou força, preconizando que o homem gerenciasse sua própria vida. É nesse cenário que surgem pensadores como Kant, cuja filosofia compreendia o ser humano como “um fim em si mesmo”.


Quando o homem passa a ser compreendido dessa forma, entende-se que é necessário que ele decida seus próprios valores, e viva sob essa égide. Apesar de esses preceitos só terem chegado à bioética anos mais tarde, a semente da autonomia plantada nessa época repercutiu nos palcos, e deu espaço para que a dramaturgia satirizasse o espaço de poder quase absoluto ocupado pelos médicos.


É neste contexto que se apresenta Molière, um dramaturgo francês do século XVII, que, após se graduar como advogado, passou a viver no teatro e escrever suas obras[2].


Seu conhecimento do mundo médico se deu quando ele próprio ficou enfermo, e percebeu como havia um contexto de total sujeição do paciente aos “doutores”, a ponto de que, qualquer pessoa que reclamasse a si esse título, invariavelmente seria ouvido por toda a comunidade – ainda que não fosse, de fato, médico[3].


Esse é o caso, por exemplo, de Sganarello, servo que, para que seu amo se casasse, finge ser médico para atender a amada do patrão, na peça “O Médico Saltador”. Outro exemplo do mesmo autor é a obra “O Doente Imaginário”, na qual o dramaturgo critica a prática sanitária como se fosse uma mercadoria, um serviço que desrespeitava a autonomia dos pacientes, deixando de lado quaisquer aspectos éticos[4].


Além disso, Molière também critica o comportamento hierárquico dos médicos, diferente do que se preza nos dias atuais, em que a informação é elemento de equilíbrio entre as duas partes da relação sanitária. A comédia busca retratar, nesse sentido, diálogos nos quais o médico explicaria a enfermidade de maneira incompatível com o conhecimento leigo do paciente.


Foi a partir de uma mudança de paradigmas da própria sociedade que se compreendeu que a autonomia do paciente deveria ser respeitada em toda circunstância. Os avanços científicos, a compreensão do direito fundamentada nos valores da pessoa humana e o trauma social vivenciado no pós-guerra do século XX contribuíram, e muito, para a concepção da bioética nos moldes como ela é hoje. Mas é inegável o papel da arte na crítica e, para além disso, na construção de uma sociedade melhor de se viver.


Texto por: Marina Rufato


NOTAS DE RODAPÉ:


[1] DWORKIN, Ronald. The Right to Ridicule, The New York Review, March 23, 2006.


[2] GUERRERO, Jair García, et. al. La ética médica en la obra de Molière. Avances, n. 19, v. 6. Disponível em: https://bit.ly/3bDavVZ. Acesso em: 11 mar. 2021


[3] GUERRERO, Jair García, et. al. La ética médica en la obra de Molière. Avances, n. 19, v. 6. Disponível em: https://bit.ly/3bDavVZ. Acesso em: 11 mar. 2021


[4] FILHO, Antônio Nery, et. al. Bioética e literatura: relato de experiência do Eixo ético-humanístico. Revista Bioética, v. 21, n. 2. Brasília: mai./aug. 2013. Disponível em: https://bit.ly/2OL2CEU. Acesso em: 11 mar. 2021.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BERGSTEIN, Gilberto. A informação na relação médico-paciente. São Paulo: Saraiva, 2013.


DWORKIN, Ronald. The Right to Ridicule, The New York Review, March 23, 2006.


FILHO, Antônio Nery, et. al. Bioética e literatura: relato de experiência do Eixo ético-humanístico. Revista Bioética, v. 21, n. 2. Brasília: mai./aug. 2013. Disponível em: https://bit.ly/2OL2CEU. Acesso em: 11 mar. 2021.


GUERRERO, Jair García, et. al. La ética médica en la obra de Molière. Avances, n. 19, v. 6. Disponível em: https://bit.ly/3bDavVZ. Acesso em: 11 mar. 2021


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