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O Direito, a ficção e o guarda-roupa



Amantes da literatura sempre acabam em um ou outro curso de Ciências Humanas ou Sociais Aplicadas. Em geral, os matriculados nestes cursos são os ávidos leitores que no Ensino Médio trocaram o tempo que poderiam ter gasto memorizando fórmulas de função exponencial por longas noites passeando pelos corredores de Hogwarts, viajando do Condado até Mordor ou erguendo-se valentemente contra a Capital. Estudantes de Direito não possuem histórias diferentes. Na reflexão de hoje gostaria de questionar em que medida a literatura de ficção serve ao Direito, indo para além de um mero hobby que gostamos de manter.


A relação interdisciplinar entre o direito e a literatura começou a ser estudada a fundo na década de 70, principalmente nos Estados Unidos, com a criação de disciplinas e cursos para investigar a conexão entre as áreas. De lá para cá, inúmeras obras foram lançadas a respeito do tema e, aos poucos, incorporaram-se aos meios acadêmicos de todo o mundo. No Brasil, por exemplo, está no ar há seis anos o programa Direito & Literatura, transmitido pela TV Justiça e pela TV Unisinos e apresentado pelo professor Lenio Streck, contando com mais de 180 obras comentadas dos mais diversos temas.


A principal abordagem metodológica utilizada dentro da relação entre direito e ficção é o uso desta última como lente para estudar diversos temas jurídicos sob contextos políticos diferentes. Usam-se as obras literárias para inserir o direito na realidade social da ficção e, a partir dela, articular uma crítica à dimensão política do direito: a quem ele serve, o que ele reproduz, o que dele se constrói. Vera Karam, professora da disciplina de direito e literatura da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), disse em entrevista que “o aplicador do direito é constantemente demandado a dar respostas a conflitos concretos e diversos, e a literatura justamente abre um espaço de reflexão e de ação mais crítico". A professora completa que, além de trazer novas perspectivas aos operadores do direito, a literatura antecipa temas relacionados ao universo jurídico. “A ficção literária tem essa riqueza, essa sutileza, essa sensibilidade que permite que o direito às vezes fique até mais bem preparado para o enfrentamento de conflitos que seriam inimagináveis fora da ficção”, continuou na entrevista.


Muito embora não se negue a importância dessa abordagem para um olhar crítico ao fenômeno jurídico, capaz de questioná-lo e reformulá-lo sob os diversos panoramas históricos e políticos que somente a ficção é capaz de trazer, ela tem um grave problema, pois parece retirar o valor de obras que não se pretendem a esse fim. Em que medida, por exemplo, um thriller de Gillian Flynn, uma ficção científica de Philip K. Dick ou uma história de terror de Stephen King poderiam ser usadas para gerar esse tipo de debate? Seriam esses livros, afinal de contas, apenas os passatempos daqueles ávidos leitores do Ensino Médio que precisam se distrair entre um Manual de Execução e um artigo científico de Direito das Famílias?


De fato, livros que possuem um "caráter comercial" (embora discorde completamente dessa terminologia, alguns céticos literários diferenciam a "literatura que serve para ganhar dinheiro", aquela mais palatável ao grande público, daquela "literatura que serve para ganhar prêmios") são ignorados pelos investigadores da interdisciplinaridade entre Direito e literatura. Veem-se tais livros como incapazes de proporcionar ao operador do direito aquele olhar crítico sobre o qual acima mencionei. Assim, na lição do fim do dia, nos é ensinado que devemos ser cultos o suficientes para nos contermos aos clássicos e premiados autores do meio literário, uma vez que best-sellers são, de acordo com essa visão, uma subliteratura. Ao meu ver, este é mais um sintoma de pseudo-superioridade que a classe jurídica gosta de cultivar a sua volta. E, pior do que isso, essa visão consegue, ao mesmo tempo, subtrair da ficção uma de suas maiores potencialidades, cujo valor, para qualquer operador do direito, é essencial: a construção de empatia.


A capacidade de se colocar no lugar do outro - a empatia - é, além de uma das funções mais importantes da inteligência, uma das principais ferramentas de todos que operam com o direito. Normas jurídicas são, a uma só vez, de, para e sobre seres humanos, em suas mais diversas relações, assim como a ficção. A literatura serve como instrumento de fortalecimento dessa habilidade, através de situações na qual enxergamos o mundo através dos mais diversos pontos de vista, onde questionamos realidades vivenciadas pelos protagonistas - ou seus antagonistas - de acordo com as concepções e projetos de vida que não nos pertencem, mas que devemos buscar compreender se quisermos entender a história que existe por trás.


Estudos da Universidade de Emory nos Estados Unidos mostraram como cérebro se comporta durante a leitura e comprovaram que o hábito de ler pode trazer modificações permanentes ao cérebro. Neste experimento, um grupo de estudantes misturou romances com livros relacionados aos seus cursos, e o outro grupo leu somente estudos e obras acadêmicas. Após o fim da pesquisa, os alunos que criaram o hábito de ler diferentes tipos de obras desenvolveram uma alta conectividade no córtex temporal esquerdo, área responsável pela assimilação da linguagem e da empatia. Eles conseguiam compreender e processar o que estava escrito de maneira mais rápida do que pessoas que não possuíam o hábito de ler. Além disso, para os pesquisadores, essas mudanças cerebrais também possuem relação com a movimentação e sensações físicas. Eles sugerem que um romance pode, de certa forma, transportar o leitor para o corpo do protagonista. “Nós já sabíamos que boas histórias podem te colocar no lugar de outra pessoa, em um sentido figurado. Agora estamos percebendo que algo assim também ocorre biologicamente”, explica um dos responsáveis.


Esses estudos demonstram que, para além do olhar crítico, a literatura de ficção também guarda em si a potencialidade de tornar operadores mais empáticos, mais humanos, capazes de se colocar no lugar dos destinatários da causa em que advogam a favor ou contra, capazes de "vestir a roupa" daquele que senta diante da mesa no escritório de advocacia. Qual o fim último do Direito se não a realização dos projetos de vida das pessoas? Sendo assim, como poderíamos operá-lo se jamais nos colocamos no lugar delas para compreender tais projetos? Concluo advogando pela causa de todo tipo de literatura de ficção, independente de seu gênero, forma ou apelo comercial. É nesse "guarda-roupa" literário - para não perder a metáfora do título - que podemos olhar no reflexo do próximo e manobrar o Direito em seu favor, realizando-o enquanto ser humano, um fim em si mesmo.


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