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Diversidade funcional e capacidade: vulnerabilidade ou ausência de mecanismos de apoio?


Ratificada pelo Brasil com o status de norma constitucional, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência estabelece os princípios “in dubio pro capacitas” e “intervenção mínima”[1], segundo os quais a capacidade sempre será presumida e dispensando ao sujeito apenas a intervenção necessária para dar apoio ao seu desenvolvimento de forma mais autônoma possível. Foi responsável também por alterar substancialmente o regime das incapacidades no ordenamento pátrio, bem como o sistema de direito protetivo de índole paternalista, antes pautado na substituição de vontades. Neste terceiro e último texto da série que aborda a temática das pessoas com deficiência (que pode ser conferida aqui e aqui), faremos uma aproximação das alterações legislativas.


A CDPD estabeleceu que os Estados - ainda deficientes neste âmbito - deverão promover mecanismos de apoio e salvaguardas, a fim de permitir o exercício pleno da capacidade legal pelas pessoas afetadas por algum tipo de diversidade funcional. A adoção dos ditos mecanismos será feita de forma livre, a depender da necessidade de cada Estado membro, e as salvaguardas vêm no sentido de evitar eventuais abusos, excessos ou ilegalidades na utilização destes mecanismos. Nesta esteira, com a promulgação da Lei de Inclusão (Lei nº 13.146/15), ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), instituiu-se o instituto da “tomada de decisão apoiada” (art. 84) como instrumento de apoio mais brando, para além do tradicional instituto da curatela. O Estatuto e as demais legislações que versem sobre o tema devem sempre estar alinhadas aos mandamentos e princípios trazidos pela Convenção e com base neles serem interpretadas.


Muito tem se questionado se as alterações sofridas pelo regime das incapacidades seriam realmente benéficas, uma vez que defendem que – supostamente – estas pessoas estariam expostas a uma situação de vulnerabilidade em casos extremos nos quais o discernimento se mostra reduzido. Para responder a tais questões, deve-se sempre ter em mente que, diante do modelo social de tratamento das deficiências, a vontade daquele que será apoiado virá sempre em primeiro lugar, bem como a realização de ajustes específicos a depender do caso, para que sejam incluídas e tenham as mesmas condições de desenvolvimento. Isto não significa, por exemplo, a abolição da ação de interdição, mas sim a mudança na forma como o curador deve conduzir a sua atuação (art. 84, §3º, EPD). Em casos de comprovada falta de discernimento, o curador tomará as decisões referentes ao patrimônio do interdito considerando toda sua trajetória de vida e suas vontades para atender, na maior medida possível, seus projetos de vida. Em casos extremos, o juiz poderá conferir-lhe amplos poderes, fixando seus limites de forma a atender a demanda do curatelado; no entanto, estes poderes não serão denominados representação legal. Mas, se após avaliação multidisciplinar for constatada a presença de discernimento necessário para a prática de atos da vida civil (que exigem um grau maior do que aquele necessário para atos do âmbito existencial), a pessoa atingida por alguma diversidade funcional pode requerer a elaboração de um documento – tomada de decisão apoiada –, revogável a qualquer tempo, no qual ela elege alguém para apoiá-la e especifica quais esferas pretende ter ajuda, inclusive a de sua vida particular, se assim entender necessário.


Importante ressaltar ainda, que apesar de o art. 1.072 do CPC/15 ter revogado expressamente os arts. 1.768 a 1.773 do Código Civil, e ter entrado em vigência após o EPD, deve-se considerar os mandamentos da Convenção, cujo status é de norma constitucional por força do §3º, art. 5º, Constituição. Assim, impõe-se uma interpretação sistemática das normas para contornar as alterações promovidas pelo Código de Processo Civil e aplicar-se aquilo que foi modificado pelo Estatuto[2], sendo certa a utilização do discernimento como baliza para orientar o exercício da capacidade, principalmente quando seus efeitos puderem atingir a esfera pessoal ou de terceiros. Considerando-se que os obstáculos socialmente impostos ao pleno exercício da autonomia em igualdade de condições por todos atinge, inclusive, aqueles que não possuem deficiência física ou mental, também se faz necessária a reinterpretação do art. 1.641, II do Código Civil em consonância com o art. 83 do EPD, para que não seja imposta ao idoso, sem qualquer deficiência intelectual, a restrição de sua autonomia.


Por fim, apesar de vislumbrar um longo caminho a ser percorrido até que o judiciário e a sociedade deixem para trás velhas premissas e passem eliminar os obstáculos que vêm impedindo o pleno gozo dos direitos pertencentes a quem apresenta alguma diversidade funcional, acredita-se no caráter positivo de todas essas mudanças. A Convenção veio em boa hora e acerta ao reconhecer como pressupostos da dignidade e da participação na vida social, familiar e política das pessoas com diversidades funcionais, sua plena autonomia e capacidade em igualdade de condições com os demais enquanto consideradas como fim em si mesmas.



Referência bibliográfica


MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da pessoa com deficiência. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 1, jan.-jun./2015. Disponível em: <http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/>




[1] Outros pontos foram abordados pela CDPD para além do destaque dado a questão da capacidade. Recomenda-se a leitura dos seguintes arts. da Convenção: arts. 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23.


[2] Para maiores detalhes sobre a ação de interdição e das mudanças legais, recomenda-se a leitura de: DIDIER JR., F. Seção IX: Da Interdição. In: WAMBIER, Teresa A. A.; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (cood(s)). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 1927- 1952.


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