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Como jogar tudo “nas costas” do princípio da dignidade da pessoa humana?



Como afirmei no texto passado, essa pergunta é passível de ajustes, mas não deixa de estar relacionada a uma preocupação do que se vê, atualmente, no cenário jurídico nacional (e internacional)[1]. Por meio desse questionamento, pretendo destacar que precisamos: (i) deixar de tratar a dignidade como pau pra toda obra, ou seja, ela não deve ser aplicada diretamente para a solução de toda e qualquer problemática jurídica; e (ii) encarar com seriedade a necessidade de se fundamentar, racionalmente, a aplicação deste princípio. Tendo em conta esses pontos, optei por trabalhar com a obra de Daniel Sarmento[2], por representar um bom exemplo justificador de tais questões e ser fruto da experiência de um constitucionalista na matéria.


Sendo assim, apresentarei abaixo, resumidamente, as quatro exigências metodológicas para a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana. Antes, porém, por razões de espaço e de vinculação ao objetivo deste texto, realizarei sucinta abordagem conceitual.


Para o autor, partindo de uma visão da pessoa humana resultante da ordem constitucional brasileira, a concepção do princípio da dignidade é materialmente delimitada por quatro componentes básicos, quais sejam: valor intrínseco da pessoa, autonomia (pública e privada), mínimo existencial e reconhecimento intersubjetivo.


O primeiro passo consiste em compreender que nem sempre ele será aplicado de forma direta, visto que, mediante o critério da especialidade[3], um caso concreto poderá ser solucionado recorrendo-se a direitos fundamentais mais específicos. Com isso, não se afasta a perspectiva hermenêutica desempenhada por esse princípio, que continua figurando como “pano de fundo”, e nem se nega a possibilidade de sua aplicação direta em conjunto com a do direito fundamental específico, nas hipóteses em que tal opção se justificar.


O segundo determina que se realize uma “fundamentação criteriosa” quando do uso direto do princípio da dignidade. Com isso, Sarmento evidencia a necessidade de que o “intérprete, quando invoca um princípio tão vago e aberto, deve ter o ônus de fundamentar a ligação entre o caso concreto e a dignidade, bem como a diretriz que o princípio proporciona para equacionamento do problema.”[4] E o autor ainda assevera que, para aquele/a que optar pela teoria por ele proposta, é preciso comprovar a existência de uma ligação “direta e relevante” entre a situação analisada e, no mínimo, um dos quatro elementos que compõe a dignidade.


O terceiro está bastante relacionado ao segundo, na medida em que se preocupa com o exame de demandas apresentadas no contexto de uma sociedade plural, incompatível com a uniformização de pontos de vistas e de vivências pessoais. “É que a interpretação e aplicação da dignidade por autoridades estatais deve respeitar o princípio da laicidade estatal e se orientar por razões públicas, vale dizer, por razões que sejam independentes de compreensões religiosas ou metafísicas particulares e que possam ser racionalmente aceitas por pessoas das mais diferentes crenças.”[5]


Por fim, o quarto passo pretende assegurar que a aplicação do princípio respeite um “relativo minimalismo judicial”. Ou seja, o “intérprete judicial não deve enveredar na busca dos ‘fundamentos últimos’ para a dignidade, penetrando em querelas filosóficas difíceis e divisivas, a não ser quando isso seja realmente necessário para o equacionamento do caso que tem de resolver.”.[6]


Como se vê, as quatros propostas metodológicas realçam o desafio relacionado a um fazer cuidadoso e um seguir em frente com prudência quanto à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, revelando-nos que tal princípio suporta muuuuuita coisa. Apesar disso, o seu uso direto não se sustenta em todas as situações, sob pena de o/a intérprete vir a se perder no sossego provocado pela sua adoção retórica e deixar de experimentar desconforto - transformador - no esforço de sua aplicação rigorosa e justificada. Pois bem, a despeito da pergunta-título, no fim das contas, a preocupação que devemos ter é justamente: como não jogar tudo nas costas do princípio da dignidade da pessoa humana.

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[1] “A crítica ao arbítrio e à ausência de critério na invocação da dignidade é praticamente universal.” (SARMENTO, 2016, 300).


[2] SARMENTO, D. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.


[3] O autor trabalha com esse termo no contexto do concurso de direitos fundamentais, admitindo sua viabilidade também quando da análise da “dignidade x direito fundamental específico”. A concorrência de direitos fundamentais “[...] se dá quando dois direitos diferentes amparam uma mesma situação, mas eles têm regimes distintos, e se torna necessário precisar qual deles se aplica. A hipótese não se confunde com a colisão, em que as normas constitucionais são contrapostas. Na concorrência, elas não são antagônicas no caso concreto, mas convergentes.” (SARMENTO, 2016, p. 304). Contudo, haverá situações em que “os respectivos contornos normativos” dos direitos fundamentais serão diferentes, havendo a necessidade se optar por um deles.


[4] SARMENTO, 2016, p. 304.


[5] SARMENTO, 2016, p. 310.


[6] SARMENTO, 2016, p. 303.


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